Tudo começou a sério, na Escola Campos Melo - a escrita ligada ao teatro e à poesia.
Em 1952, pela mão do Engenheiro Ernesto Melo e Castro, passei a fazer parte do Grupo Cénico do Orfeão da Covilhã, onde muito representei e aprendi (durante sete anos fiz teatro, disse poesia, participei nas actividades da Pró Arte, tendo como mestres na arte de dizer Carlos Correia, Dra. Maria da Ascensão Duarte Simões e Luís Ferrer, então a residir na Covilhã).
Amélia Rey-Colaço e Robles Monteiro inauguraram o Teatro-Cine da Covilhã, em 1954. Ficaram na Casa do Jardim de D. Maria José Alçada (tia de António Alçada Baptista que prefaciou o meu primeiro livro de poemas) e foi lá que lhe fui apresentada. Na salinha da entrada, do lado direito do hall, forrada de damasco amarelo torrado e com dezenas de fotografias a encherem as paredes, tive um encontro mágico com uma Senhora que me marcou profundamente pelo porte distinto, pela delicadeza de trato, pela ternura e afabilidade com que me falou.
No dia seguinte ao da inauguração, o Teatro-Cine abriu para que D. Amélia Rey-Colaço e Robles Monteiro me pudessem ver representar no palco. Interpretei “Cananeia” de Gil Vicente. Da plateia, Robles Monteiro dizia as palavras de Cristo.
O que se seguiu já Manuel Correia relatou no livro editado pela Câmara Municipal da Covilhã, "Artistas da nossa Terra". Mas não se passou tudo da forma simples como ele diz:
"Gostaram e abriram-lhe as portas do Nacional. Foi uma oportunidade que não pôde concretizar..."
Tu não foste culpado da inexactidão, meu querido amigo Manuel Correia. Eu não te dei todos os dados, porque me doía falar desta fase da minha vida e já te explico porquê.
Em conversas com D. Maria José Alçada, discutimos a hipótese da minha transferência da Escola para o Conservatório Nacional, mas esbarrámos com a vontade inquebrantável de meu Pai - para Lisboa, sem acabar o curso e sozinha, nem pensar!
Foi uma desilusão enorme, mas tinha dezasseis anos e os desgostos nessa idade não duram muito. No entanto, decidi que assim que acabasse o curso rumaria para Lisboa, para o Teatro Nacional.
Mas não correu como eu esperava. Terminados os Cursos de Formação Geral do Comércio e Complementar, compreendi que não podia partir para Lisboa com a facilidade imaginada aos dezasseis anos. Teria que arranjar um emprego. E comecei a responder a todos os anúncios que se pareciam enquadrar com as minhas habilitações. Passaram dois anos e a minha persistência foi recompensada. Uma empresa alemã convocou-me para um concurso.
Prestei provas e fui seleccionada. Em Abril de 1959, comecei a trabalhar, como correspondente em Línguas Estrangeiras, na empresa alemã, na Rua do Ouro.
A prima Mariazinha abriu-me as portas da sua casa. A filha Isabel casara, fora viver para a Covilhã e a prima Mariazinha e o primo Zé tinham ficado sozinhos, numa bonita vivenda no Alto dos Moinhos, no Pendão, Belas.
A minha primeira visita foi para D. Amélia Rey-Colaço. Conversámos, mas as perspectivas não eram brilhantes. Teria que frequentar o Conservatório, para entrar como discípula e isso representava despesas e deixar o emprego, o que era impensável.
E foi então que Deus me abriu uma janela, depois de me fechar a porta (de resto, este fechar de porta e abrir janelas tem sido uma constante na minha vida, só Deus saberá porquê).
Minha Mãe tinha um primo em Lisboa: Manuel Caldas Xavier, que conhecia meia Lisboa e me ajudou imediatamente apresentando-me a Manuel Lereno.
Num sábado à tarde encontrámo-nos na Brasileira do Chiado. Manuel Lereno quis ouvir-me e fomos para os estúdios da Rádio Renascença, ali ao pé, na Rua Ivens. Disse ao primo Manuel que eu tinha grandes possibilidades de fazer carreira no teatro e como declamadora, quis dar-me lições e prometeu-me uma apresentação no “Combóio das Seis e Meia” e na “APA”. E ofereceu-me um precioso livrinho com exercícios de dicção. Já de regresso à Brasileira do Chiado, de repente perguntou:
- "Canta bem? - e acrescentou - É que se cantasse bem, tudo seria mais fácil. Ia ao Palácio da Independência, ao Centro de Preparação de Artistas da Rádio, falava com o Professor Mota Pereira e tinha o caminho aberto para a carteira profissional”.
Mas eu disse que não sabia cantar. Em casa, contei à prima Mariazinha o que se passara e ela disse: “Canta lá uma cantiga , para eu dar a minha opinião”. Cantei "Castelo Branco é vila..." E a prima Mariazinha disse: “Segunda-Feira, assim que saíres do emprego, vais ao Palácio da Independência e pedes para falar com o Professor. Tens uma bonita voz”.
Pouco convencida, quase certa de que seria rejeitada, apresentei-me no primeiro andar do Palácio da Independência, no Rossio. Fui recebida por Isabel Wolmar, que nesse tempo secretariava o Professor Mota Pereira, no Centro de Preparação de Artistas da Rádio. Cantei "Fui um ano à vindima..." e o Professor admitiu-me no Centro.
Era o tempo da Simone, da Madalena, da Alice Amaro (um amor de colega), do Artur Garcia, Mariette Pessanha e de muitos outros que ficaram pelo caminho, e em revistas da época (Plateia, Século Ilustrado, Flama) fui indicada com uma das revelações e esperanças do Centro.
Cantava com o pseudónimo de Ivone Beirão, porque o meu nome próprio queria guardá-lo para o Teatro, que continuava a ser o meu sonho. A Rádio era a plataforma que tornaria isso possível, do ponto de vista económico.
Assim que pude, fui contar a novidade à D. Amélia-Rey Colaço e ela, com uma certa frieza, disse-me: “escolheu o caminho mais fácil”. E eu respondi: “não, D. Amélia, o mais difícil”. E expliquei o porquê da minha afirmação. D. Amélia não era dada a grandes expansões, mas abraçou-me fortemente e disse que tinha a certeza de que eu representaria no Nacional.
Todas as quartas-feiras, à hora do almoço, ia aos estúdios da Emissora Nacional, na Rua do Quelhas, fazer a gravação do programa do Centro de Preparação de Artistas da Rádio. Todos os dias tinha ensaio no Palácio da Independência, sob a orientação do Professor Mota Pereira e acompanhada pelo pianista Teixeirinha.
Em fins de Junho de 1959, estreei-me num Serão para Trabalhadores, no então Pavilhão dos Desportos. O apresentador foi Artur Agostinho, o maestro Tavares Belo. Na estreia cantei a "Farrapeirinha" e "Pica o Pé", do folclore beirão. Cantei e bisei a "Farrapeirinha".
O meu sonho começava a tornar-se realidade. Como correspondente em línguas estrangeiras, tinha um óptimo ordenado. Na Emissora Nacional pagavam-me 350$00 por cada actuação. O Professor Mota Pereira garantiu-me quatro espectáculos por mês. E ainda tinha uma página semanal na “Crónica Feminina” (nesse tempo uma grande revista, sob a direcção de Milai Bensabat e Maria Carlota Álvares da Guerra), com um conto ou crónica, que me rendia 150$00. Poderia frequentar o Conservatório, continuando a participar nos espectáculos da Emissora Nacional e a escrever para a “Crónica Feminina”.
Os alemães são óptimos patrões desde que os empregados tenham excelentes coeficientes de rentabilidade. Eu tinha que compensar largamente todas as horas que faltava, por causa de ensaios ou gravações. Levantava-me às seis e meia da manhã, para estar no emprego às oito e meia (nessa época, os comboios eram um pesadelo). Quando tinha gravação, não almoçava e ficava a trabalhar até às dezanove horas. Tinha ensaios todos os dias, a partir das dezoito ou dezanove horas, conforme a hora de saída do emprego. Só regressava a casa no comboio das vinte horas e subia aquela ladeira que nunca mais acabava, que ia da estação velha de Queluz até ao Alto dos Moinhos, no Pendão. Nos fins de semana tinha os espectáculos da FNAT.
Foram seis meses cheios de alegrias, mas também de muito cansaço. E não aguentei. Adoeci.
Regressei à Covilhã, magoada, revoltada. Não me despedi de ninguém, não expliquei nada do que se passava comigo. E desde esse dia, até hoje, nunca falei deste período da minha vida. Só o facto de o recordar, me doía. O sonho tornado realidade estivera ali, mesmo ao alcance da minha mão. E por uma fragilidade física, de que não era culpada, tudo se desfazia. Senti o gosto amargo do "quase" de que fala Mário de Sá Carneiro.
Mas tenho a resistência do granito da minha Serra e, mesmo ferida, magoada, nunca deixo de lutar. Outras janelas se abriram, outras portas se fecharam e eu cheguei até hoje. Dia em que, entre amigos, me apeteceu falar de mim, do meu grande sonho "quase" concretizado:
Porque conheci o meu marido na Covilhã (em Lisboa, numa permanência de 10 meses, nunca nos tínhamos cruzado) e depois do casamento vim novamente para Lisboa e a minha vida modificou-se totalmente com o nascimento da nossa Filha;
Porque na empresa onde me empreguei havia um Grupo de Teatro, dirigido por Carlos Pinho e, depois, por Ruy Furtado. Disse muita Poesia em Saraus, representei Gil Vicente, "A Muralha", de Calvo Sotelo;
Porque em 1991 surgiu na minha vida a Associação Portuguesa de Poetas;
Porque desde 2002 dou aulas de "Ler...e Dizer/Oito Séculos de Poesia Portuguesa", na Universidade Sénior de Oeiras, onde em cada aluno tenho um verdadeiro Amigo;
Porque existe dentro de mim esta certeza de que, apesar de todas as dificuldades, encontro sempre o caminho certo para concretizar os meus ideais.
E porque o “sonho continua a comandar a minha vida”, já tenho algumas janelas abertas para deixar entrar o sol que um dia ficou à entrada da minha porta!
Maria Ivone Vairinho
(publicado na revista da A.P.A.E. - Campos Melo - Encontro anual de antigos alunos e professores)